domingo, 15 de agosto de 2010

Histórias do feminismo 1

Art Shay, o fotógrafo americano que fez o retrato de Simone de Beauvoir nua, publicada na capa do Nouvel Obs,  conta a história da foto.

Um resumo detalhado das circunstâncias pelas quais eu fiz essa foto é relatado no livro de Hazel Rowley, publicado ano passado, "Tête à Tête"... Estritamente falando, sim essa fotografia foi roubada, segundo uma ótica feminista.
Vamos nos situar no contexto: meu amigo Nelson Algren estava chateado pois seu apartamento, que ele alugava por 10 dólares por mês, não tinha nem banheira, nem ducha. Então ele me pediu para ver um lugar para que Madame  pudesse tomar um banho de banheira ou uma ducha. Ele me preveniu com humor que uma "Frenchy", como ele dizia, raramente fechava a porta, ainda mais com uma dobradiça de porta quebrada. Uma jovem conhecida me emprestou as chaves de seu apartamento. Ela as deixou sob o capacho. Eu fui pegar Simone na casa do Nelson e a levei por cerca de 15 minutos, andando pro norte, pra casa da minha amiga. Na ida, como no caminho de volta, ela me perguntou de forma muito direta sobre minhas atividades como marido e pai de família. Se eu era fiel. Se eu amava minha esposa. "Nelson já tentou seduzir sua mulher?" (Nessa época Nelson seduzia muitas mulheres, mas não a minha). Eu a perguntei se ela era fiel, se era fiel a Jean-Paul Sartre quando estava na França, e fiel a Nelson quando ela estava em Chicago. Ela me replicou, "você é um ótimo repórter, meu jovem". Mas ela não respondeu.
Como jovem fotógrafo da Life Magazine, eu sempre levava minha Leica comigo. E esse dia não era exceção. Você precisa entender que para mim, Madame não era "uma instituição" nessa época, era acima de tudo a amante estrangeira do meu amigo, um homem que ela apreciava sobretudo pelo prazer que ele proporcionava, de um grau de satisfação bem maior que nas relações sexuais que elas então tinham na França. Nelson também me contou que o único livro dessa "famosa Madame" que ele tinha lido e o único publicado em inglês na época: "A Ética da Ambigüidade"... e acrescentou: "ler isso, é ficar boiando. Se você entender o sentido, me envie um cartão postal". Ele sempre brincalhão.
É importante precisar para as leitoras feministas da revista que Algren foi um dos primeiros defensores dos direitos das mulheres. Foi lá mesmo, em seu apartamento sem sala de banho, na Avenida Wabansia, 1523, que Simone lhe mostrou as primeiras notas sobre o "Segundo Sexo". A única crítica de Nelson é que ela havia praticamente ignorado as corajosas mulheres americanas que bem cedo se juntaram ao combate: Sojourner Truth - a evangelista negra nascida em 1797... Elizabeth Candy Stanton.. Susand B. Anthony... Ida B. Wells... Margueret Sanger... (a pioneira do controle de natalidade)... Ensinando ou enriquecendo Simone de Beauvoir de conhecimentos sobre os primeiros combates pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos. "Eu gastei uma fortuna para lhe enviar esses troços", ele reclamava.
Eu me encontrava então nessa situação, fotógrafo estagiário da Life Magazine (inicialmente contratado para carregar as sacolas e escrever as legendas), quando eu vi Beauvoir sair do banho e ficar se penteando na frente do espelho. Eu rapidamente tirei duas ou três fotos e ela escutou os cliques. "Você é um rapaz malvado", ela me disse, no entanto, ela nem me pediu para que eu parasse de fotografar, nem fechou a porta... A foto que vocês publicaram é para mim a melhor de todas. Eu entendo que a revista tenha usado Photoshop para corrigir a curvatura das pernas - mas eu acho que isso não acrescenta nada ao frescor da imagem original, muito pelo contrário. Tendo dito isso, eu também reconheço a necessidade de retocar as imagens para uma capa. Essa foto é uma das favoritas dos colecionadores que compram minhas fotos em Chicago.
Eu falei com Nelson das fotos de Simone mas ele parecia estar mais interessado em saber se ela teria ou não tentado me seduzir. Eu acho que eu fui negligente de não ter enviado uma cópia da imagem para "Madame", mas eu trabalhava os 7 dias da semana, e eu acredito, pensando nisso, que eu tinha medo que Nelson ficaria colérico se eu publicasse as fotos ou enviasse a ela e não a ele. Rapidamente, eu esqueci esse episódio. Quando eu reencontrei os negativos, sobre os quais também havia um retrato dela numa livraria, a publicação dessa foto não tinha até então nenhum valor de marchandise. Aliás, eu fiquei anos sem as ampliar, porque o rolo das pranchas-contato com os negativos tinham sido perdidos numa inundação da nossa casa no Illinois. Mas eu tinha ampliado duas fotos sobre um filme maior, um Rolleiflex, e então eu possuía outros negativos... Eu sei que Nelson enviou à Simone um desses retratos duplos. Retrospectivamente, eu me dou conta, que meus horários sobrecarregados da época me fizeram perder (e vocês também perderam) uma formidável seqüência: Nelson continuava a me convidar, eu e minha mulher, para os weekends em sua casa de Miller Beach, onde Simone às vezes ficava. Se eu tivesse podido ir nessa casa, talvez eu pudesse ter fotografado ambos, Simone e Nelson, nus. Para mim, é o inverso do que cantava a amiga de Simone, Edith Piaf: "Je les regrette" - eu me arrependo.
Uma outra estória para guardar: nas páginas 136 - 137 do meu novo livro, "Chicago's Nels Algren", eu mostro Nelson batendo num saco de boxe, um punchbag, seus músculos abdominais protuberantes. Eu anotei em algum lugar: "Madame dizia que os músculos da minha barriga lembravam os de Marcel Cerdan" se gabava Nelson quando falava de Beauvoir. E ele acrescentava orgulhosamente: "talvez eu aguentasse segurar uns dois rounds contra o Cerdan".
Como os colecionadores de fotos reagem a essa foto? Com entusiasmo. Eu sou conhecido no fotojornalismo por ter sido o primeiro paparazzo a fotografar a máfia em 15 cidades e feito a cobertura de 55 estórias criminais para as revistas Time, Life, Fortune e Sports Illustrated. Um curto artigo na Life, escrito por seu maior jornalista especializado na sessão "cotidiano" (faits divers), Sandy Smith, dizia: "Art Shay é corajosamente ousado". O escritor Garry Wills escreveu no prefacio do meu livro "Album for an Age": "Minha admiração é, primeiramente, pelo talento e pela coragem de Shay que jamais enfraqueceram. Como isso é possível? Simplesmente olhe as fotos que ele faz".
Minha filha mais velha é advogada, é uma ardente feminista, que solicita ao meu próprio editor que ele publique um livro coescrito por ela chamado "O Guia dos Direitos Legais Para as Mulheres".
Ela não acha que eu tenha que me desculpar com quem quer que seja pelo meu trabalho e eu penso a mesma coisa.
Art Shay

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